Em 1899 fora publicado pela primeira vez o livro Aradia – o Evangelho das Bruxas, escrito por Charles Godfrey Leland, um folclorista e jornalista que estudou um culto particular de bruxaria na Itália durante o século XIX, esse culto, envolto nas brumas da dúvida, deu origem ao livro Aradia – o Evangelho das Bruxas em 1899. Não espere encontrar uma crença Wiccan, mesmo que Gardner, o pai da Wicca, tenha se apoiado neste livro para criar a Wicca, a mesma surgiu somente décadas depois na Inglaterra, influenciada por diversas culturas (há elementos budistas, indianos, pagãos, maçônicos, etc.). Aqui você irá conhecer uma tradição italiana controversa e quase desconhecida pelos próprios italianos. Há quem diga que este livro não é real, já que Leland foi acusado de criar todo o texto, ou o texto foi criado pela informante dele, Maddalena Taluti, uma suposta bruxa de família hereditária que o ajudou a coletar os contos que compõem o evangelho, mas outros comprovam que estes eram somente em parte reais, já que a tradição que se fala é quase desconhecida e praticamente uma forma de reconstrucionismo pagão. Para compreender de fato este livro precisamos estar a par do contexto histórico de Leland e sua informante, a bruxa Maddalena, cujo nome real era Margherita Taluti, e que foi uma bruxa de Florença que dizia descender de uma família de linhagem etrusca e conhecer ritos e encantamentos proibidos ou secretos.
A Itália do Século XIX
O século em que viveu Maddalena e Leland foi marcado por uma intensa expulsão demográfica na Europa devido a Revolução Industrial. O alto crescimento da população, ao lado do acelerado processo de industrialização, afetaram diretamente as oportunidades de emprego naquele continente. Toda a Europa de um modo geral estava afundada na miséria no século XIX. A transição entre um modelo de produção feudal para um sistema capitalista afetou diretamente as condições sociais no continente europeu. As terras ficaram concentradas nas mãos de poucos proprietários, havia altas taxas de impostos sobre a propriedade, fazendo o pequeno proprietário se endividar com empréstimos. Havia a concorrência desigual com as grandes propriedades rurais, que fazia o preço dos produtos do pequeno proprietário ficarem muito baixos, empurrando essa mão-de-obra para as indústrias nascentes, que não conseguiam absorver essa massa de trabalhadores, saturando as cidades com desempregados.
A medida que a disputa pelos mercados consumidores se acirrou, a concentração de terras nas mãos de poucos se agravou. Assim, milhões de camponeses, que antes eram pequenos proprietários rurais, desceram à condição de trabalhadores braçais nas grandes propriedades rurais. Mesmo aqueles que continuaram na condição de pequenos proprietários não conseguiam mais tirar seu sustento da terra. Isto porque as terras eram normalmente adquiridas por herança, e o filho mais velho adquiria a propriedade após a morte do pai, enquanto os outros filhos eram excluídos. Mesmo quando as terras eram divididas entre os filhos, o fracionamento acarretava no recebimento de um pedaço de terra muito pequeno, tornando impossível dali extrair o sustento. Ter terra era ser rico, motivo de na mesma época muitos italianos migraram para o Brasil com o sonho der ter terra suficiente para sair da miséria.
Longe do que é hoje, a Itália nem sempre foi uma país unido, a Itália era formada por pequenas cidades que eram como países dados as grandes diferenças entre elas. Os povos da península itálica foram diversas vezes dominados por outros, e isso gerou uma grande variedade de povos em uma curta distância, seja pela linguagem e pelos dialetos ou pelos interesses pessoais. Somente em 1861 a Itália se unia num só país em busca de progresso contra a miséria em que se encontrava.
Quem Foi Aradia e Diana?
A figura de Aradia possui poucas fontes e entre elas encontramos Mircea Eliadne, que diz que Aradia, ou Arada, era uma variação do nome da deusa mãe das fadas romenas, Doamna Zînelor, vista por ele como uma transmutação de Diana. Zinelor era regente dos calusari, uma fraternidade secreta romena que através de sua dança pareciam voar, e com isso agiam como curandeiros para a comunidade. Outro estudioso no campo, apesar de um tanto quanto pedante e tendencioso, foi Raven Grimassi, o fundador da Stregheria, uma tradição italiana de bruxaria moderna que visava reconstruir os costumes antigos pagãos de acordo com o folclore local italiano e novas criações. Grimassi acreditava que Aradia derivava das palavras latinas ‘ara’ (fogo) e ‘dea’ (deusa), traduzindo Aradia como uma deusa luminosa ou do fogo. Diversas foram as tentativas de buscar a real Aradia sendo que até o momento a mais bem fundamentada teoria é a da antropóloga Mangliocco, que encontra na Sardenha um possível resquício da verdadeira Aradia.
Mangliocco acredita que Aradia está ligada a uma deidade chamada ‘sa Rejusta’, da ilha de Sardenha, onde segundo ela as origens do mito de Aradia tomaram forma. Aradia é uma mescla de mitos mais antigos e lendários, entre os quais figura Herodiade, uma lendária Rainha das Bruxas que voava pelas noites de Lua. Herodiade também era o nome da mãe de Salomé e a responsável pela morte de João Batista na bíblia. Segundo Mangliocco ‘sa Rejusta’ faz parte do séquito das deusas que voavam pelo céu noturno com seus súditos, a caminho do sabbat noturno, galopando nas costas de seus familiares, e a elas foram dados diversos nomes: Bensozia, Diana, Holda, Perchta, Madame Oriente, Herodiade e outros. No princípio ‘sa Rejusta’ faz parte de um grupo de seres femininos que tem por função amedrontar as crianças para que durmam logo, tal como a nossa Matinta Perera, o Saci e outros seres místicos do Brasil; mas sua grande diferença, que não a deixa ser um simples conto infantil, se dá por um outro nome dado a ela na região de Budusso (Sardenha). Ela é conhecida como ‘mama Erodia’, uma clara italianização do nome ‘Herodias’. Herodias era filha de Aristóbulo, filho de Herodes, o grande, que morreu depois de insultar o rei, deixando-a órfã. Numa tentativa de vingar a morte de sua família, ela casou-se com Herodes Filipe, filho favorito do rei, dessa união nasceu Salomé. Tempos depois o rei passou a ter como favorito seu meio-tio, Herodes Antipas, e numa atitude que escandalizou a sociedade da época, Herodias divorciou-se de seu primeiro marido para casar com o Herodes Antipas, que por sua vez, teve que separar de sua primeira esposa.
Entre aqueles que zombavam e oprimiam a relação de Herodiade e Herodes Antipas, estava João Batista, que os acusava de incesto. Foi quando lhe ocorreu de Antipas, muito feliz com a dança de Salomé, lhe prometeu dar o que desejasse. Salomé consultou sua mãe, que pediu para a jovem a cabeça de João Batista. O plano de Herodias funcionou, e a história acaba bem aqui na bíblia, porém outras fontes nos fornecem complementos para esta história. Salomé, ao receber a cabeça de João Batista em uma bandeja, caiu em prantos, arrependida do que fez. Neste momento da boca de João Batista uma espécie de vento surgiu e rodopiante levou Salomé pelos ares, onde ela penaria até o fim dos tempos, desde o banquete Salomé não é mais citada, e ao que parece Herodiade e Herodes foram exilados para o sul da atual França.
O ato de voar, ou ser levada pelo vento, é entendido na idade média como relacionado às deusas pássaros que caçam na noite, como os mitos de Lilith. No século 13, Jean de Meung, cita em sua obra “O Romance da Rosa”, que um terço da população conhecia Herodias (mesclada e confundida com Dame Abondia), citando também que durante três noites, as almas das pessoas deixavam seus corpos, que ficavam imóveis na cama. Segundo outros relados, Herodias, quando não está cavalgando pelo céu noturno, está no Monte Vênus, onde festeja com seus convidados. Ela também recebeu atributos de Lilith, como a devoradora de bebês.
Stregheria ou Stregoneria?
Stregheria é uma palavra tida como antiquada e antiga para Bruxaria. No entanto o autor Raven Grimassi criou diversos livros de wicca para criar uma nova tradição de wicca a qual se deu o nome de Stregheria, logo fica evidente que esta Stregheria de Raven Grimassi é um produto novo e incompatível com os ensinamentos deste livro, que ousam ir muito além do que a Rede Wiccana permite.
Stregoneria é a verdadeira bruxaria italiana, hereditária e mesclada muitas vezes com o catolicismo. A Stregoneria não é uma religião e as crenças de uma família para outra podem variar muito, sendo que em sua base ela é uma mistura de elementos folclóricos, práticas mágicas, oráculos, sabedoria herbal e superstição. Muitos dos praticantes da Stregoneria são católicos ativos, participantes da igreja e dos seus ritos, mas em seus lares, unem o poder da antiga fé em suas orações, usando-as para matar, curar, ajudar, atrapalhar e tudo mais que possa imaginar.
Este livro não pertence a nenhuma dessas duas tradições de bruxaria, pois este não é um guia, mas uma descrição do que Leland viu ou ouviu. Este é um livro que relata uma bruxaria italiana, identificada por Carlo Baroja, como urbana, focada no amor e no erotismo, esta bruxa é diferente daquelas do norte da Itália, que foram amplamente estudadas por Carlo Ginzburg, em “História Noturna: decifrando o sabá das Bruxas”. A bruxaria aqui descrita é muito similar a aquela das grandes urbes clássicas, num geral são mulheres de idade, alcoviteiras, iniciadas em mistérios ou detentora deles, muitas vezes usando seus dons como ofício, em troca de dinheiro ou favores especiais de seus clientes.
Cristianismo & Bruxaria
Há uma grande luta nos movimentos modernos de paganismo que buscam desvincular sua imagem do diabolismo cristão, e nesse sentido, a recepção deste livro foi quase nula pelos grupos pagãos e neopagãos. Este evangelho mostra uma suposta bruxa do século XIV que surgiu para salvar os pobres e oprimidos numa época de injustiça, fome, miséria e epidemias, tal como um messias, uma abordagem também cristã. Sem dúvida a figura de Lúcifer, neste livro, é obviamente gnóstica, tal como a ideia de Caim em sua prisão lunar. No entanto estes mostram uma forma popular de contracultura, e na época, auxiliando na queda do Antigo Regime e das práticas feudais italianas. O grande fato é que a igreja contribui para a sobrevivência destes cultos com o culto dos Santos. De fato, são muitos os Santos que realizam verdadeiras ‘feitiçarias’ para encontrar objetos, atar pessoas e fazer chover. A tradição dos santos deriva não da Igreja, mas da insistência de certas camadas em manter seus cultos domésticos, desse modo, o culto aos santos, que só foi aceito pela Igreja no 2° Concílio de Niceia em 787dc, é uma substituição aos cultos pagãos, que em muito contribuiu para formar um catolicismo popular italiano, que era uma mistura de crenças pré-cristãs sobre a qual a Igreja não tinha controle.
De acordo com Magliocco, na Itália muitos santos recebem dias e dias de orações e atenção, mas se os mesmos não intervirem com a graça solicitada estes seriam castigados até que a graça fosse concedida. Esse costumo fixou no Brasil com a figura de Santo Antônio e o Menino Jesus, uma herança do medievo. Iremos ver o mesmo fenômeno quando lidamos com os ritos deste livro, o que fato aponta que este evangelho possui alguma realidade, e diversos outros povos faziam uso do mesmo costume de ameaçar os santos e também os deuses em troca de favores por sua ‘liberdade’.
Hoje há muitos bruxos cuja Arte está ali vestida com roupas católicas, mas isso não invalida a Arte. A Arte nunca foi sobre estar contra a Igreja, mas sim sobre ser e sentir felicidade na harmonia e respeito para com o universo e aos seres que o habitam, e penso que se fossemos ainda pagãos estaríamos realizando sacríficos humanos em nome dos deuses. Originalmente a palavra Católico quer dizer ‘universal’ e era, no começo do cristianismo, uma crença ainda malformada, diversos padres praticam ritos pagãos, e ainda praticam disfarçados sob suas vestes cristãs.
Michelet, em ‘A Feiticeira’, explicou que a feitiçaria da Idade Média era uma espécie de revolta desesperada contra os males da sociedade, do feudalismo e da Igreja. Sob o nome da religião a consciência tinha sido abusada, e pecados artificiais, condenando ao inferno, foram criados para todo tipo de coisa. Assim, este livro apresenta uma bruxaria que é essencialmente anarquista, e aqui encontramos o sentimento de simpatia pelo oprimido, pelo feio, pelo desconhecido, aliado ao desejo de uma sociedade solidária e humana.
MICHAEL NEFER
Esse texto é um excerto do livro traduzido por mim, Aradia e o Evangelho das Bruxas.
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